Marcha o homem sobre o chão
Leva no coração uma ferida acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão de infinita beleza
Finda por ferir com a mão
Essa delicadeza a coisa mais querida
A glória da vida
Leva no coração uma ferida acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão de infinita beleza
Finda por ferir com a mão
Essa delicadeza a coisa mais querida
A glória da vida
É, meus amigos... Entrevista excepcional com o economista chileno Manfred Max-Neef. Vale a pena dedicar um tempo para lê-la. Provavelmente você não pensará tanto no PIB nas próximas eleições...
Instituto Ethos: O senhor acredita que o crescimento econômico, após atingir um determinado ponto, tem efeito negativo para a sociedade?
Manfred Max-Neef: Segundo a Teoria do Umbral, que criei com meus colegas há 15 anos, o crescimento econômico está alinhado à qualidade de vida de uma sociedade somente até certo ponto. Depois disso, a tendência é que ele se torne maligno ao bem-estar das pessoas. Essa teoria foi comprovada em todos os países onde realizamos o estudo, como Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Suécia, Áustria, Dinamarca, Chile e Tailândia. Todos eles tiveram um grande período de crescimento econômico e desenvolvimento até o ano de 1970. Após essa data, o nível de qualidade de vida da população começou a cair. Para obter esse resultado, comparamos a curva de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) com a de outro índice, o Genuine Progress Indicator (GPI), que mede a qualidade de vida. Por meio de gráficos, percebemos que o crescimento econômico continuou aumentando, enquanto o GPI apresentou queda. Para mim, o PIB é um indicador muito curioso, no qual tudo pode ser somado sem levar em conta o que é bom ou o que é ruim. Por exemplo, os acidentes de carro, o aumento do consumo de serviços médicos e as epidemias são fantásticos para o PIB. No GPI o método é outro. Soma-se tudo aquilo que tem impacto positivo para a sociedade e deixam-se de lado os aspectos negativos, como os custos de poluição e de degradação do solo. O GPI também soma exterioridades que não são consideradas pelo PIB, como o trabalho doméstico e o trabalho voluntário. O PIB é um índice machista, pois para ele a parcela de mulheres no mundo que trabalha em casa (80%) não é considerada. O trabalho de uma pessoa que caminha quilômetros a fim de buscar água para sua família também não é acatado. Ou seja, o PIB não reflete o desenvolvimento da sociedade. Se o PIB de São Paulo for examinado durante 20 anos, vamos perceber que grande parte do investimento é destinado a corrigir problemas gerais decorrentes do crescimento excessivo da cidade. Essa verba poderia ter sido aplicada em outro projeto de maior utilidade para a sociedade. O crescimento após determinado momento se torna antropofágico.
Instituto Ethos: O senhor costuma dizer que as empresas estão amarradas num modelo do século passado. Como seria a empresa ideal para o momento em que estamos?
MM-N: Eu fiquei muito impressionado com uma indústria brasileira que visitei num desses dias, que é a Natura. Tive a percepção de que lá tudo está concentrado nas pessoas. A água consumida é reciclada. O que a empresa produz não afeta a natureza. Ela consegue explorar os recursos do próprio país. Todos os aspectos são coerentes com os princípios sustentáveis e com uma economia humanizada. Para muitas outras empresas, o mais importante é o lucro. A custo de quê? De explorar o trabalhador e destruir a natureza. Para mim, a empresa deste momento é aquela que coloca a economia a serviço das pessoas, e não o contrário.
Agência Sebrae: O senhor comentou sobre uma grande empresa. Mas como os pequenos negócios podem se adequar a esses padrões sustentáveis?
MM-N: Sozinhos não podem fazer grandes mudanças. É preciso uma política de Estado que estimule as boas práticas. A grande empresa pode fazer muitas coisas sem a permissão de ninguém, mas o pequeno precisa ser visto dentro de um contexto global. Uma das condições fundamentais para se ter uma boa economia e uma sociedade sustentável é modificar drasticamente o sistema tributário. Defendo que os impostos devam ser tributados de acordo com a energia que a empresa consome e não com o que ela ganha. Por que querem castigar alguém por trabalhar? Esse castigo deveria ser para quem consome muita energia ou para quem tem muitos automóveis. Se isso fosse feito, todas as empresas iriam descobrir formas de consumir menos energia. Já com o sistema tributário corrente não há nenhum estímulo nesse sentido. As empresas procuram o contador apenas para descobrir o que podem fazer para pagar menos impostos. Se as empresas fossem tributadas a partir do que elas gastam com energia, haveria uma grande mudança no sistema de comércio atual, que eu considero absurdo em termos ambientais. Qual o sentido de o Brasil exportar e importar sabão ao mesmo tempo para um mesmo país? A região em que vivo, no Chile, é uma grande produtora de leite, e mesmo assim você encontra no mercado local manteiga fabricada na Nova Zelândia. É um absurdo a quantidade de CO2 gerado sem necessidade para trazer esse produto de tão longe. Acredito que os processos econômicos devam ser analisados a partir da perspectiva dos gastos energéticos. A globalização acontece porque gera crescimento para o PIB, mas é um agressão à biosfera.
Instituto Ethos: Qual é o papel das universidades nesse contexto, que exige mudanças de comportamento da sociedade?
MM-N: A universidade não está cumprindo o papel que deveria. Ela deixou de ser uma instituição orientadora, que fazia críticas à sociedade, para se converter numa máquina a serviço do mercado. A universidade é cúmplice de um mundo que ela não aprova. Considero um escândalo o modo como a economia vem sendo ensinada dentro das escolas e como ela é aplicada na prática. Estou profundamente decepcionado com o que aconteceu com essa disciplina. Como é possível educar um economista hoje com livros clássicos que não contêm palavras como ecossistema e natureza? Como é possível aceitar que a economia se considere um sistema fechado, sem nenhuma relação com outros sistemas? Um economista não pode ignorar o funcionamento do ecossistema. Se isso ocorre, a responsabilidade é da universidade. Para ensinar aos alunos temas relacionados ao meio ambiente, o professor precisa fazê-lo por fora, como subversivo.
FNQ: O senhor se considera um otimista ou um pessimista?
MM-N: O pessimista acredita que já não há mais nada a fazer, enquanto o otimista não faz nada porque acha que o mundo está ótimo. Eu me considero um pessimista ativo. Creio que as coisas não estão bem e que precisamos nos adaptar a isso da melhor forma possível. É preciso surgir neste século a filosofia da solidariedade. Estamos todos na mesma situação. Se não formos solidários, não estaremos preparados para as condições desse novo planeta. Não ser solidário é estúpido e um mau negócio.
Instituto Ethos: Na opinião do senhor, de que forma as mudanças climáticas afetarão os povos da América Latina?
MM-N: Calcula-se que pelo menos 2 milhões de pessoas terão grave carência de água, porque o aquecimento global vai afetar as neves eternas dos Andes e a grande maioria das cidades localizadas nessa região é abastecida por águas de degelo. Isso vai provocar uma migração sem precedentes. E para onde irão essas pessoas? Quem vai abrir as portas para tanta gente? Enfrentaremos um problema de solidariedade muito forte. Mas a tendência é que se levantem muros. É muito brutal que essa filosofia de cobiça e acumulação continue existindo.
Instituto Ethos: Por que o senhor costuma dizer que acredita mais nos empresários do que nos políticos?
MM-N: Há 30 anos eu fiz parte de um setor que acreditava que os empresários eram os maus da história e nós é que éramos os bons. Somente quando comecei a me abrir para o diálogo com as empresas é que percebi que estava completamente equivocado. Descobri que a grande maioria dos empresários quer dialogar e está sempre aberto a mudanças. Usando argumentos concretos, é possível convencê-los do melhor caminho a seguir. Já com os políticos é diferente. Eles estão sempre pensando no próximo ano e nos números que lhes interessam.
FNQ: E por que, mesmo sabendo disso, o senhor foi candidato à presidência do Chile, em 1993?
MM-N: A primeira coisa que eu disse quando me candidatei à presidência de meu país foi que eu não tinha nenhum interesse em assumir o cargo. Minha candidatura foi uma desculpa para colocar em pauta assuntos que não faziam parte das discussões políticas. Apenas quis ser o candidato dos temas ausentes.
Instituto Ethos: O senhor acredita que os governos na América Latina estejam incluindo a sustentabilidade em suas pautas?
MM-N: Acredito que poucos têm consciência do que está acontecendo. A Costa Rica, por exemplo, é um lugar que já despertou para o problema. O país tem muitas iniciativas que visam a sustentabilidade e melhor uso dos recursos ambientais. Mas ainda é muito pouco. Deveria haver muito mais. O Brasil é um caso extraordinário. Vocês têm uma responsabilidade histórica descomunal, porque são donos da maior biodiversidade do planeta. E o que estão fazendo? A Amazônia continua sendo destruída, porque a obsessão pelo crescimento econômico é muito maior.